domingo, maio 14, 2006
Marta
Uma mulher nua sentada sobre um banco de veludo vermelho. Voltada para uma penteadeira antiga escova cuidadosamente os cabelos longos e ondulados. O corpo que se reflete no espelho é quase perfeito à luz imprecisa que invade o quarto. Dedica-se aos cabelos como se deles tudo dependesse.
Um quarto de hotel na Lapa. Hotel de quinta categoria. O céu está la fora, sempre lá fora. O céu nunca é onde estamos, nunca dentro de nós, ela pensa. O que tenho dentro de mim é uma tempestade, chuva, vento forte.
O homem deitado a observa, sem brilho no olhar. Os lençóis da cama amarfanhados. O vestido no chão. Segundos depois, com ar de enfado ele pega o jornal que trouxera consigo e principia a lê-lo. Lê o jornal por algum tempo, e pára, a página de esportes acabou. Olha o quarto onde pisca a luz esverdeada do salão de bilhar logo em frente, e a mulher a pentear os cabelos .
Crescem nele as perguntas. O que faz ali pela enésima vez nestes ultimos 5 anos, com uma prostituta, quando em casa lhe espera a família na casa limpa e bem iluminada na Tijuca? Sempre a mesma mulher, sempre o mesmo lugar. A vida gastando-se aos poucos no que agora lhe pareciam horas de vício. Tinha uma lembrança vaga de como tudo começara e a certeza de que era passada a hora de terminar com aquilo. Cortar radicalmente o mal. Dobrar a vida.
Ela se lembrava de tudo nos mínimos detalhes. Era professora primária e estava toda arrumada naquela tarde, pois pela primeira vez decidira-se a ir ao cinema sozinha. Escolhera um filme exibido num cinema no centro da cidade, na Cinelândia. Depois atrevera-se a entrar num bar próximo, que não conhecia, para tomar um suco. A atitude, radical, para uma moça vinda de uma cidade do interior para o Rio de Janeiro , a cidade grande, a fazia sentir-se vitoriosa e segura . No bar ele a abordou com muita delicadeza e gentil conversou com ela sobre muitos assuntos que lhe pareceram agradáveis, não falaram sobre as vidas pessoais. Ela não teve vontade de lhe perguntar sobre isto e ele também não fez perguntas. Lembrava-se do encanto a invadir-lhe a cada palavra que ele lhe dizia, do olhar que a seduzia, da oferta para levá-la até sua casa em Irajá e por fim do beijo após confessar que era casado. Não posso ter compromissos, ele dissera. Sou casado. Mas a beijara na porta de casa. E ela consentira, era só pele, coração e pernas bambas.
Você estava naquele bar, ele disse então, suavemente. É um bar conhecido pela frequência. Sendo uma profissional talvez possamos continuar a nos encontrar algumas vezes, eu lhe pago e fica tudo acertado. Sendo eu casado parece mais correto, sem envolvimentos. Depois de uns segundos tentando entender o que ele queria dizer com a palavra “profissional” ela estremecera ao perceber. Mas se conteve ao ver aqueles olhos castanhos a lhe pedirem que assim fosse para poderem continuar juntos, e seu coração a gritar ainda mais e aquela fome de aventura. Disse-lhe que sim, anuindo com a cabeça os olhos pregados na cerâmica bege da entrada do portão. E durante 5 anos se encontraram naquele mesmo quarto.Tudo fora determinado por ele, hora, lugar. Tudo. Recusara é claro, o pagamento ( não, não, eu amo você, é por amor) Ele rira. Nunca tinha visto uma coisa dessas, dissera. Todo o tempo ela esperava que ele percebesse a diferença que havia entre ela e uma prostituta. Todos estes anos esperando que ele enfim a reconhecesse. Nos modos, nas conversas, na pouca experiência sexual que tinha, no quanto ele tivera de a ensinar.
Escovava o cabelo lentamente sabendo que ele gostava de a ver assim, calma e bela sentada à sua frente. Esperava que enfim ele lhe dissesse : querida, desculpe-me por tudo, eu amo você. Esperava uma esperança débil e temia. Temia o que nem se atrevia a pensar, mas pensara. Se pensara! Os anos mudam uma pessoa, tornam-na realista. Já não tinha ilusões. Olhava aquele homem que tinha sido a sua paixão todos estes anos e via o desinteresse dele gravado em cada gesto.
Ele decidiu-se: - Marta, acabamos por aqui, chega! Não posso nem quero mais vir. Não quero seguir andando com uma puta, mesmo que seja em segredo. Logo eu um gerente de banco, o que diriam minha família e amigos? Uma puta ! Um escândalo. E depois nem tem mais graça , nem tesão. Nem sei como aguentei todos estes anos! seu tom era de desprezo.
Ela vestiu seu tailleur cinza, as meias 7/8 fumée, os sapatos pretos de saltos altos e finos, e levantou-se . Contendo, sempre contendo, o susto que tivera, e a tensão aumentava, a raiva. Ele teve que reconhecer : - Para uma puta você é de uma elegância impressionante.
Ela recolheu os cabelos num laço azul royal, ainda sem dizer palavra .
- Não vai dizer nada? perguntou admirado.
- Vou sim, Nelson. Chamo-me Maria Lúcia Gomes, disse-lhe no primeiro dia, mas você cismou de me chamar de Marta e eu não quis contrariá-lo. Sou professora . Jamais fui prostituta, me admirou sempre você não querer perceber isto. Sempre esperei que acontecesse. E que esta coisa, à qual me submeti por amar você, se transformasse numa relação normal. Mas não foi assim. Eu queria apenas que você dissesse algo que o redimisse da sua insensibilidade, do seu egoísmo. Infelizmente não aconteceu. E agora estas coisas ditas assim por você, são como bofetadas. Quem não aguenta mais sou eu! Chega!
Ele ironizou :
- Ah, vai dizer também que esperava que eu me separasse para casar com você? Era só o que faltava. Uma puta afinal, ora essa ! Professora coisa nenhuma...
- Chega, Nelson ! Eu já disse que chega! É a última vez! disse ela, a voz e o corpo trêmulos de indignação.
Ele ria .
Maria Lúcia tirou da bolsa uma pequena pistola e disparou três tiros à queima-roupa que o barulho e música alta do quarto ao lado disfarçaram. Guardou-as na bolsa, pistola e escova. Limpou com um lenço muito branco as possibilidades de ter deixado impressões digitais no quarto. Pegou os livros que trouxera, colocou os óculos escuros e saiu não sem antes olhar para o corpo daquele homem que amara, as feições de surpresa paralisadas no rosto dele, sangrando sobre a cama. Não lhe importava mais. Só o que ela queria era o pedido de desculpas dele por ter-se enganado confundindo-a, induzindo-a a se fingir prostituta, à degradação que levou junto o amor que sentia .
Não se esqueceu de avisar na portaria do hotel. - Ouvi uns barulhos estranhos num quarto perto do meu, pareceram tiros. Acho melhor irem verificar, disse sem sequer tremor na voz. O rapaz do balcão ao ver aquela senhora conhecida de vista, elegante e educada, respondeu com presteza. Sim, senhora, agora mesmo vou lá ver. Há meses Maria Lúcia vinha alugando e frequentando um outro quarto no mesmo hotel, num andar mais acima, dizia que precisava solidão para escrever sua tese.
Deixou o lugar aliviada, um sorriso brando no rosto e chamou um táxi. - Por favor, leve-me para o Cinema Odeon, ali na Cinelândia.
Silvia Chueire
dito por Silvia Chueire
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6 Comments:
ana laura diniz said...
de lascar!
Anônimo said...
Infelizmente vivemos num mundo cheio de pessoas de total insensibilidade, incapazes de perceber valores, nas pessoas ou nas coisas, são tipos que provavelmente não terão capacidade de avaliar este conto como uma verdadeira obra de arte literaria, como o é- na minha opinião.
Oarabens e um grande abraço deste constante leitor.Prova disto é que tenho há muito linkado obotequin ao meu simplerrimo blog.
Carol Rodrigues said...
ahh sim
adorei o texto
concordo com cada palavra do que o manoel disse
uma olbra literária de 1° qualidade
^^
li stoducto said...
muito bom o texto, silvia! só tive tempo de ler hoje e adorei!
um beijo
ps: mando a música por email, ok?
ps2: tenho andado introspectiva... quando sair desta fase te ligo.
Silvia Chueire said...
Obrigada pela gentileza de todos. Muito obrigada. Não sei se é literatura, este continho. Meu métier com as palavras é outro, vcs sabem. Mas fico feliz.
Beijos,
Silvia
ps: Li, ligue mesmo, ôxe!
ana laura diniz said...
ora, silvia, seu métier é com tudo aquilo que você propõe a escrever. é muito bom. como disse, de lascar! uha! quero mais! beijo
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