terça-feira, março 28, 2006
O dono da boca
Helineide chegou atrasada ao serviço hoje. É minha faxineira há anos e raramente se atrasa. Mora na Rocinha que não é longe, em vinte minutos de ônibus está na minha casa. Tive uns probleminhas, me diz sem jeito. Eu concordei com a cabeça, tudo bem. Não dei importância, o atraso não foi grande e ter problemas não chega a ser novidade.
Dobrei a beirada da toalha de mesa, como se fosse um plissê – hábito herdado da minha mãe – e segui pensando em como ia explicar ao João, o homem da minha vida, que não era possível continuarmos a viver juntos se ele não contribuisse financeiramente para a manutenção do apartamento e outras pequenas mordomias. Com os olhos perdidos na parede de fórmica da cozinha eu pensava em como ia dizer isto ao homem que amo sem parecer que o estava encostando à parede. Fazendo-o perceber que quem estava contra a parede era eu, eramos nós. E como eu amo aquele homem que tem tantos talentos, mas não o de ganhar dinheiro.
Helineide me viu assim, de olhar fixo na fórmica, as mãos trabalhando a fazer e desfazer o plissê-que-não-acabava-mais e parou junto à mesa. Pigarreou e permaneceu parada. Estranho a Helineide me olhando sem dizer nada. Interrompi o que fazia : - O que que é há Helineide ? - É que estou com um probleminha, achei que a senhora que é tão lida e é médica e tudo, talvez pudesse me ajudar. - Alguém está doente ? perguntei por curiosidade e alguma solidariedade. ( Como é que vou dizer a ele ? pensei. Meu amor, o meu dinheiro só dá para sustentar uma pessoa e olhe lá. Você precisa trabalhar em algo que dê grana) - Não a senhora não está entendendo, queria desabafar, saber a sua opinião , saber o que que eu faço. - Fala, Helineide, diz. E parei com o plissê (depois eu penso no que direi a ele).
- Bem a senhora sabe que eu tenho duas filhas. Uma de vinte anos que é mãe solteira e uma de dezoito. A de dezoito trabalha fora numa farmácia, a mais velha não trabalha, toma conta da casa e do menino. São bonitinhas, as duas. Novas, mulatinhas jeitosas, de corpo bem feito, e são ainda por cima mais assanhadas do que eu gostaria que fossem. - Sim e então? - Pois é, eu estava muito preocupada com a mais nova porque um sujeito que trabalha para o tráfico se engraçou por ela. Bandido não! eu disse. Mas ela deu bola, por vaidade ou porque ele tem algum poder e dinheiro, deu bola. - E agora? perguntei preocupada por ela. - Bem, a senhora sabe, no morro o dono da boca ajuda a gente. Quando falta grana ele empresta. Leva para o médico no carro dele se alguém precisa de urgência. Interfere nas brigas de casais e dá conselhos aos filhos que são maus para as mães – no morro há tanto filho sem pai – compra remédios para os que precisam e não têm como comprar, faz muitas coisas para ajudar a comunidade e nunca pede nada em troca. Mas a gente sabe que ele fez um favor. Eu evito sempre pedir. Porém desta vez era diferente e não tinha outro jeito, a neguinha não me ouvia, de modo que eu resolvi ir falar com o dono da boca, pedir para ele afastar aquele sujeitinho da minha filha que é uma menina direita.
Dito isto Helineide começa a chorar e eu fico sem entender nada. - Tá chorando por que Helineide? O que houve, ele não fez nada? - Ah, Dona Sônia, a senhora nem sabe... - O que, mulher !? - Agora o dono da boca está a fim da minha menina. O outro não apareceu mais e é só presente chegando lá em casa. Televisão,som, relógio novo pra ela. A danada da neguinha anda cheia de ares de rainha. E eu morta de preocupação. Dona Sônia, o dono da boca quer a minha filha, já pensou? A quem é que eu vou pedir agora ? Ela não me ouve. Logo o dono da boca... Já rezei, já procurei mãe de santo, já prometi mundos e fundos a todos eles, já fiz mandinga, e nada. Até igreja de crente eu procurei. Continua tudo neste pé, o dono da boca tá interessado nela. E como está! O que é que eu faço ?
Calei-me pensativa. Meu problema perto do dela era nada. Eu posso apertar mais as finanças enquanto o meu amor não consegue expor os seus quadros e começar a vendê-los. São lindos os quadros, eu sei que ele tem talento.
- Mas logo o dono da boca, Helineide? Que coisa... disse a abraçá-la sabendo que não tinha solução, a menina ia ter que resolver sozinha a questão, isso se quisesse resolver algo.
Porque o dono da boca, no morro, é quase deus, quase diabo.
Silvia Chueire
dito por Silvia Chueire
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6 Comments:
Anônimo said...
Realidade traçada e retratada de forma tranquila e leve,ótimo conto!
Parabéns pelo espaço.
linda semana
beijosssssssss
spersivo said...
Silvia,
Perfeito:um problema geral e um particular!Adorei. Silvio
Anônimo said...
Nossa! Esse site é maravilhoso, parabéns por toda a edição do mesmo! Os textos são ótimos pra uma rica análise social!
Anônimo said...
Nossa! Esse site é maravilhoso, parabéns por toda a edição do mesmo! Os textos são ótimos pra uma rica análise social!
Silvia Chueire said...
Obrigada a todos. : )
Silvia
dade amorim said...
A realidade do Rio está cada vez mais parecendo um pesadelo. Às vezes, pra relaxar um pouco, é preciso imaginar que vai acontecer alguma coisa pra melhorar tudo isso. Mas é pura ilusão - estou ficando muito pessimista em relação a nossa amada cidade. Beijo pra você
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