sexta-feira, abril 07, 2006
Cimento e rosas
Toda vez que passo na esquina arcangélica das ruas são Miguel e são Rafael meu coração ensaia um pequeno vôo e meus pés querem tomar a direção da casa de varanda e jardim, hoje protegida por um muro áspero de cimento cinza. Tenho que fazer um esforço para desviar daquele portão e seguir meu caminho. Agora moram lá outras pessoas, a casa está meio decadente e perdeu o charme, seria doloroso vê-la de novo por dentro sem as flores, o cheiro bom daquele tempo e a luz que o riso de tia Anita irradiava. Nem se justificaria entrar na casa dos outros, na certa iam desconfiar de assalto e eu ia parar na décima nona depê. Tia Anita morava naquela casa com o marido, meu amado tio Marcelo, e o filho mais novo, por quem fui absolutamente tresloucada até os quinze anos, e que acabou casando com a vizinha, depois de se desiludir com uma menina que foi sua grande paixão. Mas isso é outra história. Os vizinhos os consideravam pessoas abastadas. Não eram, hoje sei. Mas naquele tempo a medida para avaliar os bens de alguém não passava apenas pelo que esse alguém efetivamente possuísse, mas por seu modo de viver, e a casa deles era uma delícia de conforto e bom gosto. Tio Marcelo foi a ovelha negra de uma família tradicional de Botafogo, e os nomes de seus parentes estão gravados nas placas de muitas esquinas do bairro. Foi um boêmio incorrigível, os pais viviam sobressaltados por causa dele. Tantas aprontou que o pai, um senhor daqueles que podem se permitir uma austeridade inflexível, resolveu que ele devia parar de comer caviar em baixelas importadas. Recomeçar a vida como funcionário dos correios, que naquele tempo era um emprego razoável, não foi tão ruim. Lá ele fez bons amigos, alegre do jeito que nunca deixou de ser, e conheceu tia Anita, na flor dos dezoito, com os enormes olhos castanhos e os dentes perfeitos da família de mamãe – que eu, snif snif, não herdei. Velho lobo de trinta e poucos anos, boêmio e pé-rapado, parou diante dela e caiu fulminado por uma paixão que durou toda a vida. Fogo e pólvora não se encontram impunemente. Casaram em seis meses, literalmente babando um pelo outro. A mãe dele abençoou a nora, anjo salvador, e lhe declarou amor de mãe. Herança, nem pensar: estava comprovado que o dinheiro estragava aquele estróina, e agora ele teria todas as razões do mundo para desunhar firme, ser homem útil à sociedade, comer pão com suor – coisa que ele, um gourmet refinado, positivamente não faria. Mas enfim, se queria continuar com seus lagostins e torradinhas, que fizesse por onde. Sem herança, eles eram a fome e a vontade de comer. Tio Marcelo, educado na Suíça, francês fluente, conhecedor de etiqueta e arte; tia Anita, educada aqui mesmo em colégio público de bom ensino, também traçava lá seu francês, lia muito e fazia versos românticos. Mas mãe é sempre mãe. A sogra lhes deu a mobília da sala, ébano e cristal bisotado. As famílias e os amigos providenciaram o que faltava, e não foi pouco. Tio Marcelo plantou rosas no jardim, quando mudaram para a casa da esquina. A mesa era posta com castiçais, talheres de alpaca e porcelana. Claro, ao longo dos anos ele pulou a cerca algumas vezes, mas o casamento não se desfez: tia Anita segurou todas as barras. Saíam de cada crise ainda mais unidos. Pareciam feitos um para o outro, e nem nos piores momentos se falou em separação. Tia Anita se foi dois meses depois dele. Foi pela mão de tio Marcelo que muito cedo conheci os museus de arte e o teatro. Era louco por Balzac, me emprestava seus livros de poesia francesa e me apresentou aos licores italianos e ao vinho branco. Me falava de Veneza, Paris, Londres e de uma cidadezinha suíça que fui conhecer muitos anos depois. Eu o escutava fascinada, porque ele era um ator e tanto. Incentivava minhas aulas de pintura como se eu fosse uma vangoga em potencial. Quando passo por aquela esquina arcangélica, parece que estou ouvindo o riso de tia Anita. Evito olhar o horrendo muro de cimento cinza, que me dá uma tristeza dessas que choram no meio do esterno, e na memória me aparecem as rosas com cheiro e tudo. Mas a casa da esquina, antiga morada das flores e da beleza, caiu na real da morte lenta que ora sepulta o Rio. Devem ter cimentado o jardim também.
dito por dade amorim
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5 Comments:
Anônimo said...
Lindo, Adelaide!
Que riqueza de cenários, de memórias esses queridos tios te deixaram.
ju rigoni said...
A memória faz brotar flores no cimento... Que maravilha, Dade! Um beijo e inté!
li stoducto said...
que memória linda, dade!
me encantei com o tio marcelo!!! queria um tio assim pra mim!
ele era barreto, é?
botafogo é cheia de barretos...
paula barreto, muniz barreto, mena barreto...
beijos
Silvia Chueire said...
Gostei, gostei, gostei!
Beijos,
Silvia
Anônimo said...
Sou novo por aqui, mas fiquei MUITO satisfeito com o que li. Parabéns pela bela crônica, viu?
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