sexta-feira, maio 05, 2006
Escotomas cintilantes
Escotomas cintilantes, gosto destas palavras. Já escrevi isto alguma vez. O prenúncio da enxaqueca, acabam os escotomas, estas luzinhas que brilham soltas por cima de tudo que olho, ela eclode. Martelando. Tornando incômodo o azul muito claro do céu de verão, o sol despudorado. Os ruídos, as vozes, qualquer esforço inesperado. À tudo martela minha cabeça a dor.
Várias gotas de analgésico. Passeio os olhos pelo mar. A visão luminosa poderia incomodar-me mais não fosse eu uma pessoa marítima , uma pessoa que gosta de risos e canções. De sol. Do ritmo no qual a água vem ter à areia em renda branca e é hipnótico. Chama-me sempre.
Pronto. Paro o automóvel e fico ali a ouvir o som das ondas leves, a brisa entrando pela janela aberta. Saio do carro e recosto-me nele a pensar. Em algum lugar chove a essa hora, em algum lugar é noite, em algum lugar é inverno e inóspito. Em algum lugar outra pessoa olha a paisagem e pensa . Em algum lugar alguém chora de fome, alguém sente uma profunda tristeza. O mundo é um abismo de acontecimentos. Uma população de acasos. Um oceano de encontros, de desencontros. Nada sei da vida e não sabendo escrevo palavras ao léu. E converso silenciosamente comigo mesma.
O que vale da vida é o prazer que temos ao vivê-la. Nada mais. Por razões idiotas e civilizadas não entro n’água. Ah sim, e porque penso que deve estar fria, a água. A água fria sobrepõe-se a tudo. Se eu fosse meu próprio leitor riria de mim à essas alturas. Mas não sou, e sei que a água fria me é desagradável. Assim, sigo a conversa. Solilóquio, mesmo.
Respeito o oceano, como respeito o obscuro que temos dentro de nós. As grandes vagas, a profundeza, os lugares onde não há luz, que desejamos e tememos conhecer. O inesperado que pode fazer virar um grande barco. A calma da superfície plana e brilhante a ocultar outro universo logo abaixo.
Quisera escrever um poema. Poema que contivesse em si o significado da vida. Em que cada verso seria essencial Nascer, crescer nas dores de abandonar a infância. Amar. Ver o mundo. Olhar cuidadosamente para além de nós, muito além. Olhar o outro. O precipício e a proximidade surpreendente dos outros. Parir, descobrir que podemos amar mais do que pensávamos. Multiplicar-nos em amor por cada filho. Tentar fazer para eles, do mundo um lugar menos estrangeiro do que nos parece tantas vezes. Aconchegá-los enquanto for necessário. Olhar toda a estranheza do mundo de frente, olhos nos olhos. Viver intensamente. Amar apaixonadamente. Viver, eu dizia. Cantar com a voz, o corpo, tomados pela canção. E os olhos úmidos. E o coração na mão. Silenciar, quando o silêncio for a palavra certa.
Nada faz nexo e tudo faz esse nexo diverso do que era há uns minutos atrás. Beber o conteúdo da vida aos goles, um de cada vez. O corpo entregue à atividade de conhecer-se e conhecer em torno. Galopar todas as fúrias, todos os sentidos. E morrer um dia, o corpo cansado de viver. Sem remorsos. Sem medo. Sem pensências. O mar está calmo e não há mais escotomas nem dor. Entro no automóvel e retomo meu trajeto. Canto com a canção do rádio. Quisera escrever o poema.
Silvia Chueire
dito por Silvia Chueire
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